Uma questão de nobreza
Há milhões de anos, uma célula primária de vida passiva (que não dependia de gasto energético para sua sobrevivência, utilizando apenas água e oxigênio), sentiu-se vulnerável e procurou uma parceria que pudesse oferecer-lhe “força” (energia). Naquela situação, ocorreu a união da célula de vida passiva com um microorganismo de vida ativa (que produzia sua própria energia para obter uma melhor qualidade de sobrevida).
Prof. Dr. Zan Mustacchi
Originou-se então, uma célula com mitocôndrias (bateria energética indutora da energia vital chamada de ATP – Adenosina trifosfato) que ao que tudo indica foi uma simbiose de uma bactéria com uma célula primária.
A atividade elétrica mensurada (eletrocardiografia, eletroencefalografia, eletromiografia, etc.) expressa a vitalidade celular que por sua vez está exclusivamente relacionada com a atividade mitocondrial, sendo a mitocôndria uma estrutura definida como organela citoplasmática (portanto não está no núcleo da célula), que contém um cromossomo em forma de anel (anular) o qual assemelha-se em mais de 99% em estrutura ao cromossomo de uma bactéria conhecida como E Colli e este é o motivo pelo qual acredita-se em um processo evolutivo da simbiose de uma célula primária com uma bactéria adaptada.
Chamo a atenção para o fato de que o número de cromossomos de uma célula é determinado pelo universo de seu material genético e o número de 46 cromossomos está relacionado somente com os cromossomos do núcleo, não sendo considerados portanto, os cromossomos existentes nas mitocôndrias, que são citoplasmáticas e de número muito variável entre os grupos celulares até do mesmo sistema. Este número (de mitocôndrias) varia de forma intimamente relacionada à atividade de produção energética necessária para a referida célula.
Até muito recentemente desconhecíamos comprometimentos hoje conhecidos como doenças mitocondriais e conseqüentemente qualquer alteração genética estava delegada a alterações dos cromossomos exclusivamente nucleares.
O núcleo, até onde se conhece, é o local onde se inicia e evolui o processo de multiplicação celular ou duplicação de informação genética que caracteriza nossa denominada mitose, que contém as informações do genoma.
As células dividem-se em uma velocidade variável e ao que tudo indica, quanto mais rápido é o processo de divisão e multiplicação celular (conhecido como mitose), mais curto é o ciclo de vida e o programa de morte celular (apoptose). Por este motivo, há maior possibilidade destas células sofrerem uma freqüência de mutação, cujo exemplo mais apropriado é a ocorrência de uma desorganização da divisão nuclear com conseqüentes alterações, principalmente na estrutura cromossômica acarretando o que chamamos de mitoses atípicas que são o principal marco das neoplastias (câncer).
Considerando-se o processo acima, passamos a entender de forma clara a íntima relação de tecidos que desenvolvem mais freqüentemente neoplasias com a aceleração da velocidade de multiplicação de suas células originárias. Como sabemos que a via respiratória e digestiva tem a mesma origem embriológica, estes tecidos se assemelham muito e estão em permanente multiplicação e descamação celular, que segundo algumas referências bibliográficas tem um ciclo vital de 15 a 21 dias. A pele que recobre o nosso corpo também está em constante renovação por descamação e o ciclo dessas células é de cerca de 15 dias. Tal processo enfatiza a evidência de neoplasias (ou alterações cromossômicas) destes tecidos numa freqüência maior que em outros sistemas do corpo humano como, por exemplo, o sistema nervoso (tecido considerado nobre) que raramente expressa neoplasias quando comparada à freqüência desta evidência nos tecidos anteriormente referidos.
Nas últimas décadas do milênio passado notou-se a íntima relação entre a doença de Alzheimer e a estrutura cromossômica do braço longo do cromossomo 21. Em um estudo multicêntrico realizado nos EUA com indivíduos institucionalizados com mais de 60 anos de idade e com Alzheimer, encontrou-se uma alta freqüência de aneuploidias com trissomia do 21 em biópsia de pele do antebraço (indivíduos estes que não tinham a SD). Este achado associado à indução de placas amilóides no SNC sugeriu fortemente uma condição de que pudesse existir indivíduos com mutações celulares do SNC para células com a referida aneuploidia acarretando Alzheimer. Em conseqüência, investiu-se na suposição de que uma forma de diagnóstico prematuro de um prognóstico evolutivo para Alzheimer poderia ser obtido fazendo-se biópsias seriadas em pele de indivíduos nos quais houvesse a possibilidade de herança de riscos familiares.
Ao considerarmos tal possibilidade, poderíamos talvez afirmar que o envelhecimento que ornamenta-se das mais variadas formas de aneupoidias neoplásicas preservaria os tecidos nobres de lesões, isto justificaria porque apesar do indíviduo apresentar desde cedo uma expressão de mosaico celular da trissômia do 21 em sua pele, o quadro de Alzheimer se apresenta tardiamente com relação a outras aneuploidias não neurológicas.
Investigações paralelas na década de 1980 comprovaram que em nosso fígado existiam estruturas celulares com aneuploidias e mosaico. Tal situação permite-nos novamente abordar um fenômeno muito questionado quanto a maior ou menor proporção a neoplasias de um determinado grupo de tecido ou sistema mais ou menos induzidos ou correlacionados a fatores ambientais mais evidentes em uma determinada genealogia. Após tantos questionamentos e incertezas poderíamos novamente presumir, e porque não afirmar, que se os diferentes comprometimentos sistêmicos de maior ou menor expressão, verificados em indivíduos com SD por trissomia simples (avaliados em sangue periférico) não seriam em virtude de mosaisismo segmentares. Portanto, os tecidos com maior expressão da aneuploidia manifestariam maior comprometimento.
Ao interpretarmos o parágrafo anterior podemos deduzir que até o intelecto ou o potencial de capacitação e as habilidades cognitivas possam sofrer as mesmas repercussões do universo de aneuploidias encontrado nos tecidos correspondentes a essas funções. Então como poderíamos afirmar tão prepotentemente que não há “graus” de habilidades intelectuais em indivíduos com SD? Será que voltaremos a modelos retrógrados de classificação de castas? Será que em algum momento poderíamos mensurar o quanto de potencial nos é pré-determinado pela condição genética? Mas por outro lado se usamos só 10% do nosso SNC, e portanto do potencial intelectual, como poderíamos selecionar nossos neurônios “perfeitos” e excluir atividade daquele com aneuploidias?
Estamos perante uma delicadíssima tarefa de rever conceitos e preconceitos, no foco da intelectualidade, ou melhor, da “deficiência mental” dos indivíduos com SD.
O comprometimento intelectual tem sido indicado como o mais deletério processo que envolve a SD, mesmo que a meu ver o componente mais deletério seja o preconceito social, não podemos deixar de dar razão ao valor da pergunta dirigida à expectativa intelectual.
Deste modo, o modelo da abordagem das inteligências múltiplas proposto por Gardner, pode ser entendido não só como um evento ambiental (capacitação a partir das oportunidades proporcionadas), mas também a coexistência de equilíbrios cromossômicos das vias neuronais específicas nas quais o indivíduo se destaca. Não existem ainda evidências da quantificação da concordância ou discordância com estudos em gemeralidade monozigótica do perfil de distribuição e comportamento das inteligências múltiplas nestes indivíduos que possa traduzir e quantificar as responsabilidades da genética e do ambiente.